quarta-feira, agosto 17, 2011

Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes -Vinícius de morais


























A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas.
Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva.
De repente não tinha pai.
No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança
Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância
Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino
Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna
Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta
De Augusto geralmente procrastinava a tarde.
Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho
Rangia nos trilhos a muitas praias de distância
Dizíamos: "E-vem meu pai!" Quando a curva
Se acendia de luzes semoventes, ah, corríamos
Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes
Mas ser marraio em teus braços, sentir por último
Os doces espinhos da tua barba.
Trazias de então uma expressão indizível de fidelidade e paciência
Teu rosto tinha os sulcos fundamentais da doçura
De quem se deixou ser. Teus ombros possantes
Se curvavam como ao peso da enorme poesia
Que não realizaste. O barbante cortava teus dedos
Pesados de mil embrulhos: carne, pão, utensílios
Para o cotidiano (e freqüentemente o binóculo
Que vivias comprando e com que te deixavas horas inteiras
Mirando o mar). Dize-me, meu pai
Que viste tantos anos através do teu óculo-de-alcance
Que nunca revelaste a ninguém?

(...)

Conjugação do ausente Vinícius de Morais






















(...)

Tua graça caminha pela casa
Moves-te blindada em abstrações, como um T. Trazes
A cabeça enterrada nos ombros qual escura
Rosa sem haste. És tão profundamente
Que irrelevas as coisas, mesmo do pensamento.
A cadeira é cadeira e o quadro é quadro
Porque te participam. Fora, o jardim
Modesto como tu, murcha em antúrios
A tua ausência. As folhas te outonam, a grama te
Quer. És vegetal, amiga...
Amiga! direi baixo o teu nome
Não ao rádio ou ao espelho, mas à porta
Que te emoldura, fatigada, e ao
Corredor que pára
Para te andar, adunca, inutilmente
Rápida. Vazia a casa
Raios, no entanto, desse olhar sobejo
Oblíquos cristalizam tua ausência.
Vejo-te em cada prisma, refletindo
Diagonalmente a múltipla esperança
E te amo, te venero, te idolatro
Numa perplexidade de criança.

(...)

A torta ( Paulo Vas )para Hilda De Andrade Cardoso






























Tua gata que não tiveste caminha pela casa, como irineus,
abafada pelo cheiro daquilo que cozinhavas,pensavas e ousavas;
azeitaste o bacalhau e coroastes com ovos e pimentão, afora com os teus dedos que sabiam dar,como em tua braveza que entornavas no riso, na esquina de tua boca,diante das mulheres, que nao reconhecias, como ninguém o faz, fostes adiantada na torta;
mas o dia chegou e fostes, com medo da gata que não tivestes , e com o temor
da torta que temias não ficar exposta devidamente com cheiros de maçã cortadas em gomos para adornar a ti e a vida.
Teu cheiro repercute agora sem temores, com o teu medo que nada adiantou ,da morte do M da Maçã,da morte, da mordida e da mesa e da casa que não tivestes, segredastes, isto, fazendo o café dos outros, escevestes escondindo, coando, na tampa ,mas salvastes, pelo M,pelo R,pelo, E
que ironia.
Tua gata repousa, como que catando a ti , tu não mais catas, já fizeste,
Agora ës pronta!

O menino que cresceu no jardim Gonçalo Tavares PT






















Era uma vez um jardineiro que todos os dias, ao fim da tarde, regava um menino para ele crescer.
Era nisso que o menino acreditava: se as flores crescem assim por que razão não crescerei eu, também, com a ajuda da água? E o jardineiro lá lhe fazia a vontade: regava-o, com delicadeza, como regava as suas mais belas plantas.
Devido a esta mistura com o jardim ou talvez por causa de qualquer outra razão misteriosa este menino cheirava tão bem que as abelhas não o largavam. Porém, rodeavam-no com modos pacíficos. Que simpáticas eram as abelhas! Como se fossem animais domésticos, amestrados. As minhas abelhas, dizia o menino.
E sucedia algo ainda mais estranho: as abelhas, em vez de fazerem aquele barulho desagradável que faz tremer os ouvidos, produziam, pelo contrário, uns sons suaves, melodiosos: como sons de piano. E o menino ficava tão embalado com a música suave deixada no ar pelas abelhas que adormecia três vezes por dia; o que era francamente melhor do que só adormecer uma.
As abelhas, além de se portarem como uma orquestra privada, ainda deixavam, como presente, algum mel no copo que o menino costumava trazer.
No final de semana, o menino ia vender o mel para o mercado. As abelhas, entretanto, não paravam de andar à volta dele, tocando música e depositando mel no copo, mal este se esvaziava.

Com este negócio o menino ganhou bastante dinheiro. Com o dinheiro ele pensava que conseguia crescer muito mais rápido do que o normal e que apenas em cinco anos ficaria um adulto grande. O certo é que não aconteceu isso. Mesmo com muito dinheiro o menino não cresceu mais rápido, cresceu ao ritmo de todos os outros colegas da escola. Percebeu nessa altura que o dinheiro não dava para tudo, mas só mais tarde agradeceu essa lentidão no crescimento.
O dinheiro não dava para crescer, mas a água sim.
A seu pedido, o jardineiro continuava a regá-lo todos os dias. Ele crescia ao mesmo ritmo que os outros, mas a água permitia que ele crescesse com um perfume emprestado das flores. E as abelhas continuavam a rodear-lhe a cabeça.
Durante alguns meses imaginou em adulto vir a ser um príncipe, mas depois cansou-se de imaginar os outros todos a curvarem-se à sua frente, cheios de respeito. Pensou que se viesse a ser príncipe provocaria muitas dores de costas nos seus amigos, que estariam sempre a curvar-se diante dele, e por isso quis, logo ali, antes dos dez anos, mudar de profissão. Não iria ser príncipe.
Decidiu, então, ser maestro, e transformou-se rapidamente (na sua imaginação) no maestro mais famoso do mundo. E era um maestro famoso precisamente porque não precisava de orquestra. Eram as abelhas que faziam todos os sons à volta da sua cabeça. Cada movimento das suas mãos provocava um movimento harmonioso das abelhas, e deste movimento nasciam belos sons.
A verdade é que, mais tarde, em adulto, o menino não foi príncipe nem maestro.
Escolheu uma profissão bem mais modesta: foi jardineiro. Considerava-se mesmo o jardineiro mais feliz do mundo. E tinha razões para isso. Eram muitas já as crianças que iam ao seu jardim, pedir para serem regadas de modo a cresceram saudáveis e cheirosas como ele, o jardineiro que na infância tinha sido um menino com muita imaginação. .

Oráculo”, Corsino Fortes
















(...)

Toda a palavra é útero de sete pedras

......................................E

Toda a palavra é um poema bissexto

Leva quatro anos de pudor

E quarenta & tantos de paixão

Para inundar o deserto da estiagem

(...)

Roda Viva | José Saramago | 13/10/2003 para não esquecermos

um pensador, um alucinado,como todo grande escritor e que questiona o próprio instrumento que se vale para ser JOSÉ SARAMAGO.Um ensaista da ...