Documentário recria as invenções do poeta matogrossense Manoel de Barros NEUSA BARBOSA Especial para o UOL, do Cineweb Documentarista de segunda viagem, o carioca criado em Pernambuco Pedro Cezar tem-se mostrado capaz de reverter as expectativas sobre os assuntos que aborda. Em seu filme de estreia, "Fábio Fabuloso" (2005), perfil de um surfista brasileiro conhecido internacionalmente, ele conseguiu despertar o interesse até de quem nunca pegou uma onda, devido à criatividade da linguagem do filme, que usava o cordel como recurso. Tanto deu certo que "Fábio Fabuloso" saiu do Festival do Rio e da Mostra Internacional de São Paulo com o prêmio de público. Manoel de Barros 92 anos, tem cerca de 20 livros publicados e vive em Campo Grande FOTOSFICHATRAILEROPINIE Em seu segundo filme, "Só Dez Por Cento É Mentira", retrato do poeta matogrossense Manoel de Barros que estreia em São Paulo e venceu o prêmio de melhor documentário no Festival de Paulínia 2009, o desafio do diretor é vencer o que ele considera um preconceito tanto contra o gênero documentário, como contra a poesia. Para isso, ele conta com a própria recusa de fazer "um filme poético" e também com o carisma de seu personagem. "Manoel é apaixonante", define o cineasta, em entrevista ao UOL Cinema. Abaixo, os principais trechos de sua conversa. ASSISTA AO TRAILER DO FILME "SÓ DEZ POR CENTO É MENTIRA"
UOL Cinema - Você fez uma transição cinematográfica curiosa, de "Fábio Fabuloso", um surfista, ao Manoel de Barros, um poeta. Como foi isso?
Pedro Cezar - Na verdade, eu pego onda desde os 10 anos. Gosto muito de surfe e também sou um leitor de poesia. Tenho dois livros publicados. Acho que não tem transição, porque são dois assuntos que me interessam muito como tive muita sorte de fazer dois filmes sobre duas pessoas que eu não me incomodaria absolutamente de ser durante alguns dias. Já pensou? Eu gostaria muito de entrar numas cinco ondas com aquela fluidez do Fabinho. E escrever poesia como o Manoel.
UOL Cinema - O que lhe chama a atenção no estilo do Manoel?
Pedro Cezar - A forma como ele se expressa me ensinou que muita coisa não é imprescindível, como sempre me disseram: rima, métrica, o assunto. As frases loucas dele, as inversões, como "minha maçã come Eva". Esse cara é muito visual, muito imagético. E tudo que eu via na obra dele não me falaram nas aulas de literatura. Foi uma coisa que chegou na minha mão sem ser indicação de um professor. Hoje o Manoel se aprende na escola mas na minha época não se aprendia. Na melhor das hipóteses, se lia Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Cecília Meirelles. E os parnasianos... Na minha época era: "Minha terra tem palmeiras/onde canta o sabiá".
UOL Cinema - Como você o conheceu?
Pedro Cezar - Eu ganhei o "Livro sobre Nada" quando completei 30 anos. Aí eu li - isso foi em 96. Fiquei supermobilizado para publicar meu próprio livro, rever minhas coisas. Aí resolvi ler tudo o que aquele cara escreveu. Descobri o "Livro das Ignorâncias". Mais piração ainda. Passam-se um ou dois anos e vou parar numa oficina de poesia, com a Elisa Lucinda. Nos tornamos grandes amigos e ela me botou num dos recitais dela. E eu fui dizendo uma poesia do Manoel chamada "Bernardo". A Elisa conseguiu trazer o Manoel para assistir ao recital. E me deu a missão de buscá-lo no aeroporto. Eu dei pra ele um versinho meu. Entre esse momento e eu ir bater na porta dele para fazer o filme foram sete ou oito anos, sempre encontrando com ele.
UOL Cinema - Mesmo assim, você conta no filme que foi difícil convencê-lo a fazer o documentário. Por quê?
Pedro Cezar - Eu mesmo agi acreditando que não ia dar certo. Ele me dizia: "Pra que você quer minha cara, essa ruína, se você tem minha obra ? O melhor que eu posso produzir está ali. Você quer conversar comigo para quê?" Eu tentava convencê-lo de que as pessoas queriam ver o autor dos versos. Ele continuava negando. Mesmo quando eu dizia que talvez fosse chamar um ator para fazer o papel dele e que este precisaria ter um material como base. Ele continuava resistindo: "Faz a tua pesquisa de outro jeito". Eu tinha desistido. Aí aconteceu de eu falar a palavra "sonho" e ele ficou misericordioso. E me mandou voltar no dia seguinte.
UOL Cinema - No filme viveu-se um momento dramático, da morte do filho do Manoel. Como foi isso?
Pedro Cezar - Foi um acidente mesmo da vida. O João tinha 50 anos de idade, era trabalhador, ocupado, bon vivant. Era um sujeito muito cativante. Fazendeiro, como o Manoel, e era o cara que viabilizava esse ócio que permite ao Manoel escrever. Tinha interesse pela obra do pai, tinha sensibilidade. Tanto que muitas frases dele entraram na obra do Manoel. Quando criança, quem falava coisas do tipo "vou puxar o vento pelo rabo" era ele. O Manoel dava o tratamento dele, mas em estado bruto foi o João quem falou muita coisa que o Manoel publicou até no livro "Poeminhas pescados numa fala de João".
Ele pilotava um aviãozinho. No dia do acidente, levava um possível comprador para um pedaço da fazenda. Apareceu um bezerro, ele arremeteu. Quando voltou, o bezerro entrou de novo na pista de pouso, aí não teve jeito. Foi uma comoção. Era tão idolatrado quanto o pai. E o Manoel teve que lidar com esse filme tendo acontecido isso, ele e a mulher totalmente destruídos.
UOL Cinema - Quem é aquele personagem que cria os objetos malucos, os "desobjetos"?
Pedro Cezar - Aquele cara é um ator. E as coisas que ele está mostrando foram feitas pelo Marimba, que é um artista plástico que mora no Rio e adora a obra do Manoel. Os "desobjetos" foram uma encomenda nossa. Aí apareceram o esticador de horizontes, o alicate cremoso, o aparelho de ser inútil...As explicações dele eu gravei e serviram de orientação para o ator, Paulo Giannini. Que foi, aliás, o último que chegou a um teste de elenco. Só depois eu descobri que ele tinha feito um monólogo sobre o Manoel, chamado "O Homem de Barros", e excursionado o Brasil inteiro.
UOL Cinema - Você mesmo admite que documentários sobre poesia tem má imagem junto ao público. Por que?
Pedro Cezar - Geralmente, o pessoal joga filme de poesia tudo no mesmo saco. Falou "documentário sobre poesia", espantou o contribuinte. Primeiro, porque é documentário, palavra que significa: "eu vou estudar". Qual é antônimo de entretenimento? Documentário. (ri) Aí vem outra coisa. Sinônimo de chatice? Poesia. Documentário poético, então, seria o estudo sobre uma coisa chata. Daí a dificuldade de mandar alguém que não seja mais uma das que santificam o Manoel de Barros para assistir ao filme. O que me anima é a reação das pessoas que tem visto o filme nos festivais em que ele passou. Elas até saem do filme e vão comprar os livros, como contaram para a gente no debate em Paulínia.
NA MATA O SAPO ME CONTAVA HISTÓRIAS DE DIRCEU, RESMUNGAVA. MAS PRONUNCIAVA UM DITADO:
DO TEMPO, DO SER E DA GOSMA; EU ERA O SAPO OU ELE ERA EU? A ÁGUA ME PRONUNCIAVA E DIZIA: E U
O GRILO RETRUCOU E CANTOU UMA CANTIGA DE AMOR COMO SE FORA SUA CANÇÃO E MINHA CANÇAO DE AMOR A MATA ERA LONGA E DENSA DENSO FICOU MEU AMOR ASSOLETREI TEU NOME E ENCANTEI-ME
Conheci Eugenio no Porto em 1981, levou ao pé da varanda com um cálice do vinho do porto e recitou-me um poema, ficamos horas a conversar, foi um grande dia e inesquecível.Paulo Vasconcelos
BIOGRAFIA....... Poeta português, nasceu em 19 de Janeiro de 1923 em Póvoa de Atalaia, Fundão, no seio de uma família de camponeses. A sua infância foi passada com a mãe, na sua aldeia natal. Mais tarde, prosseguindo os estudos, foi para Castelo Branco, Lisboa e Coimbra, onde residiu entre 1939 e 1945. Em 1947 entrou para a Inspecção Administrativa dos Serviços Médico-Sociais, em Lisboa. Em 1950 foi transferido para o Porto, onde fixou residência.
Abandonou a ideia de um curso de Filosofia para se dedicar à poesia e à escrita, actividades pelas quais demonstrou desde cedo profundo interesse, a partir da descoberta de trabalhos de Guerra Junqueiro e António Botto. Camilo Pessanha constituiu outra forte influência do jovem poeta Eugénio de Andrade. Embora não se integre em nenhum dos movimentos literários que lhe são contemporâneos, não os ignorou, mostrando-se solidário com as suas propostas teóricas e colaborando nas revistas a eles ligadas, como Cadernos de Poesia; Vértice; Seara Nova; Sísifo; Gazeta Musical e de Todas as Artes; Colóquio, Revista de Artes e Letras; O Tempo e o Modo e Cadernos de Literatura, entre outras.
A sua poesia caracteriza-se pela importância dada à palavra, quer no seu valor imagético, quer rítmico, sendo a musicalidade um dos aspectos mais marcantes da poética de Eugénio de Andrade, aproximando-a do lirismo primitivo da poesia galego-portuguesa ou, mais recentemente, do simbolismo de Camilo Pessanha. O tema central da sua poesia é a figuração do Homem, não apenas do eu individual, integrado num colectivo, com o qual se harmoniza (terra, campo, natureza - lugar de encontro) ou luta (cidade - lugar de opressão, de conflito, de morte, contra os quais se levanta a escrita combativa). A figuração do tempo é, assim, igualmente essencial na poesia de Eugénio de Andrade, em que os dois ciclos, o do tempo e o do Homem, são inseparáveis, como o comprova, por exemplo, o paralelismo entre as idades do homem e as estações do ano. A evocação da infância, em que é notória a presença da figura materna e a ligação com os elementos naturais, surge ligada a uma visão eufórica do tempo, sentido sempre, no entanto, retrospectivamente. A essa euforia contrapõe-se o sentimento doloroso provocado pelo envelhecimemto, pela consciência da aproximação da morte (assumido sobretudo a partir de Limiar dos Pássaros), contra o qual só o refúgio na reconstituição do passado feliz ou a assunção do envelhecimento, ou seja, a escrita, surge como superação possível. Ligada à adolescência e à idade madura, a sua poesia caracteriza-se pela presença dos temas do erotismo e da natureza, assumindo-se o autor como o «poeta do corpo». Os seus poemas, geralmente curtos, mas de grande densidade, e aparentemente simples, privilegiam a evocação da energia física, material, a plenitude da vida e dos sentidos. Foi galardoado com o Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, atribuído a O Outro Nome da Terra (1988), e com o Prémio de Poesia Jean Malrieu, por Branco no Branco (1984). Recebeu ainda, em 1996, o Prémio Europeu de Poesia. Foi criada, no Porto, uma fundação com o seu nome.
Autor de uma importante obra poética, podem referir-se os seguintes títulos: Adolescente (1942); As Mãos e os Frutos (1948); Os Amantes sem Dinheiro (1950); As Palavras Interditas (1951); Até Amanhã (1956); Conhecimento da Poesia (1958); O Coração do Dia (1958); Os Afluentes do Silêncio (1968); Obscuro Domínio (1971); Limiar dos Pássaros (1972); Véspera da Água (1973); Memória de Outro Rio (1978); Matéria Solar (1980); O Peso da Sombra (1982); Poesia e Prosa, 1940-1989 (1990), O Sal da Língua (1995), Alentejo (1998), Os Lugares do Lume (1998) e Antologia Pessoal de Poesia Portuguesa (1999). Organizou ainda, várias antologias, como a que dedicou ao Porto (Daqui Houve Nome Portugal, 1968) e a Antologia Breve (1972). Em 2000, publica Poesia. Escreveu também livros para crianças. É um dos poetas portugueses mais traduzidos para outras línguas. Em 1982, o Governo português atribuiu-lhe o grau de Grande Oficial da Ordem de Sant'Iago da Espada e a Grã-Cruz da Ordem de Mérito em 1988. Em 1986, recebeu o Prémio da Associação Internacional dos Críticos Literários. Em 1996, recebeu o Prémio Europeu de Poesia da Comunidade de Varchatz (Jugoslávia). Em 1999 organizou a obra Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Em Maio de 2000, recebeu o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, entregue pelo Presidente da República. O prémio distingue todo o percurso e toda a obra do escritor. Também recebeu, no mesmo ano, o Prémio Extremadura de criação literária e o Prémio Celso Emilio Ferreiro, para autores ibéricos. Em Fevereiro de 2001, Eugénio de Andrade recebeu o Prémio Celso Emilio Ferreiro, na Galiza. Em Maio, Eugénio de Andrade foi homenageado no Carrefour des Littératures, em França.Em Julho, foi atribuído ao poeta o Prémio Camões, que se mostrou satisfeito, quer pelo prestígio do galardão, quer por ver o seu nome associado ao de Luís de Camões. No mesmo ano publicou Os Sulcos da Sede
Passamos pelas coisas sem as ver, gastos, como animais envelhecidos: se alguém chama por nós não respondemos, se alguém nos pede amor não estremecemos, como frutos de sombra sem sabor, vamos caindo ao chão, apodrecidos.
É urgente o amor. É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas.
É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer.
Entre os teus lábios é que a loucura acode, desce à garganta, invade a água.
No teu peito é que o pólen do fogo se junta à nascente, alastra na sombra.
Nos teus flancos é que a fonte começa a ser rio de abelhas, rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos é que a areia queima, o sol é secreto, cego o silêncio.
Deita-te comigo. Ilumina meus vidros. Entre lábios e lábios toda a música é minha.
Diz homem, diz criança, diz estrela. Repete as sílabas onde a luz é feliz e se demora.
Volta a dizer: homem, mulher, criança. Onde a beleza é mais nova.
É na escura folhagem do sono que brilha a pele molhada, a difícil floração da língua.
Música, levai-me:
Onde estão as barcas? Onde são as ilhas?
Procura a maravilha.
Onde um beijo sabe a barcos e bruma.
No brilho redondo e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
A boca,
onde o fogo de um verão muito antigo
cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento para ser ave,
e cantar.
Levar-te à boca, beber a água mais funda do teu ser -
se a luz é tanta, como se pode morrer?
Sê tu a palavra
1. Sê tu a palavra, branca rosa brava.
2. Só o desejo é matinal.
3. Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria.
4. Morre de ter ousado na água amar o fogo.
5. Beber-te a sede e partir - eu sou de tão longe.
6. Da chama à espada o caminho é solitário.
7. Que me quereis, se me não dais o que é tão meu?
Colhe todo o oiro
Colhe todo o oiro do dia na haste mais alta da melancolia.
Ainda sabemos cantar, só a nossa voz é que mudou: somos agora mais lentos, mais amargos, e um novo gesto é igual ao que passou.
Um verso já não é a maravilha, um corpo já não é a plenitude.
Nunca o verão se demorara assim nos lábios e na água - como podíamos morrer, tão próximos e nus e inocentes?
Devias estar aqui rente aos meus lábios para dividir contigo esta amargura dos meus dias partidos um a um
- Eu vi a terra limpa no teu rosto, Só no teu rosto e nunca em mais nenhum
De palavra em palavra a noite sobe aos ramos mais altos
e canta o êxtase do dia.
Foi para ti que criei as rosas. Foi para ti que lhes dei perfume. Para ti rasguei ribeiros e dei ás romãs a cor do lume.
Húmido de beijos e de lágrimas, ardor da terra com sabor a mar, o teu corpo perdia-se no meu.
(Vontade de ser barco ou de cantar.)
Sê paciente; espera que a palavra amadureça e se desprenda como um fruto ao passar o vento que a mereça.
Hoje roubei todas as rosas dos jardins e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.
À breve, azul cantilena dos teus olhos quando anoitecem.
Eram de longe. Do mar traziam o que é do mar: doçura e ardor nos olhos fatigados.
A raiz do linho foi meu alimento, foi o meu tormento.
Mas então cantava.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos. Era no tempo em que o teu corpo era um aquário. Era no tempo em que os meus olhos eram os tais peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade: uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor..., já não se passa absolutamente nada. E no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas.
by Diário de Notícias PT por FRANCISCO MANGASHoje http://www.fundacaoeugenioandrade.pt/
Se fosse vivo, o poeta Eugénio de Andrade faria hoje 87 anos. E teria como prenda uma má notícia: a fundação do poeta, na Foz do Douro, pode ser extinta. Ana Maria Moura, que o acompanhou nos últimos 30 anos, revela alguns dos pequenos prazeres do autor de 'As Mãos e os Frutos'
Se Eugénio de Andrade fosse vivo, teria como prenda de anos uma notícia desagradável: a fundação do poeta corre o risco de fechar. É a pior prenda que o Eugénio poderia receber. Ele não está cá, estão as pessoas que gostam dele. Espe-ro que o bom senso prevaleça e se-ja preservado este lugar em memória do Eugénio e da poesia. A direcção da Fundação Eugénio de Andrade solicitou ao Governo a extinção da instituição. Sabia? O prof. Arnaldo Saraiva [presi-dente da fundação] não falava comigo sobre esses assuntos. Sei que foram cortados subsídios do Governo e da Câmara Munici- pal do Porto. Desde Novembro, os funcionários da instituição - eu e mais duas outras pessoas - estão no Fundo de Desemprego. Como conheceu o poeta? Foi há mais de 30 anos. O meu marido, em criança, acompanhava a mãe na limpeza do atelier do mestre José Rodrigues, nas Fontainhas, que o Eugénio frequentava. Aí tornaram-se amigos. Quando está-vamos próximos de casar, Eugé-nio quis conhecer-me. Nasceu o meu filho, o Miguel, e a amizade reforçou-se. Éramos uma família não biológica, mas uma família. Eugénio ajudou o Miguel? Muito. Na educação, em tudo. Quando surgiu a fundação, viemos para aqui viver. Ele só aceitou habitar na fundação se a família também viesse. Quando o Miguel vinha da escola, ficava na casa do Eugé-nio: arranjava-lhe o lanche e ajudava-o a fazer os deveres. Eugénio fazia hoje 87 anos. Comemorava os aniversários? Quando era novo, comemorava com entusiasmo. Com passar dos anos, ficava deprimido nesse dia: a ideia da morte deixava-o em pânico. Mas a casa enchia-se de flores, telegramas, o telefone sempre a tocar - era uma coisa fantástica. Era pessoa de trato difícil? Era dócil. Mas todos nós temos dias bons e dias maus. Se insistiam em assuntos que não queria falar, ele ficava um pouco mais ríspido. Vinha muita gente aqui trazer sacas de livros para ele autografar. Reagia mal? Dizia assim: "Essa gente pensa que eu tenho aqui um carimbo como o Torga para pôr nos livros!" Quando escrevia: podia estar alguém por perto? Tinha a música dele, e não queria de facto que o rodeassem. Levan-tava-se cedo, às 07.30 já estava a pé. Tratava da gata, punha-lhe a comida, depois preparava o pequeno- -almoço. E à noite? Dormia mal. Ficava sempre com um caderninho à beira dele e muitos lápis. Se lhe surgisse alguma ideia, apontava. Trabalhava as coisas até à exaustão. Falava da mãe? Falou várias vezes da mãe, figura importante na sua vida. Mulher muito bonita, dizia. Chegou-me a dizer que eu tinha um feitio parecido com o da mãe. E do pai? Quando falava do pai, falava dele com muita dureza. Lia poemas? Lia os poemas ao Miguel. O Miguel chegava da escola ou da faculdade e sentava-se aqui a falar. O Eugénio lia-lhe o trabalho que tinha feito. Aquela Nuvem e Outras são as histórias que ele contava quando o meu filho era criança. Gostava de ouvir os seus poemas? Gostava de ouvir o Miguel a dizer os poemas. Sempre que chegava um livro novo, ficava entusiasmado - até se esquecia do jantar. Tinha algum prato favorito? Batatas fritas com um ovo estrelado, porque lhe lembrava a infância. Quando acordava de madrugada, se tivesse melão no frigorífico, levantava-se para o ir comer. Era fácil de alimentar. Sopa, tinha de comer sempre. Como viveu os derradeiros dias no hospital o homem que tinha pavor da morte? Ele não queria que eu me viesse embora. Gritava: "Não vás, fica comigo. Não quero ficar sozinho." Ele tinha medo do hospital.
[Campina Grande, PB 1935- ], poeta, ensaísta, jornalista, folclorista e professor, publicou Zé Limeira, poeta do absurdo (1980), colabora em revistas e jornais nordestinos.
Soneto Dos dedos que falam
Que importa que foguetes cruzem marte
E bombas de hidrogênio acabem tudo,
Se aos meus dedos, teus dedos de veludo
Ensinam que o amor é também arte?
Não desejo mais nada além de amar-te
E em êxtase viver, absorto e mudo,
Sorvendo da ternura o conteúdo
Que antes te buscava em toda parte!
Esses dedos que afago entre meus dedos,
Que acaricio a desvendar segredos
De amor nestes momentos que nos prendem,
Têm qualquer coisa que escraviza e doma,
Porque teus dedos falam num idioma
Que só mesmo meus dedos compreendem!
Conceição 63
Rua da conceição, sessenta e três
(a artéria tem o ar de um cais comprido)
aqui, anos sem fim tenho vivido
buscando a infância azul que se desfez.
Talvez seja isso um sonho, mas talvez
este meu velho abrigo tenha sido
da mesma argila minha construído,
porque é a mesma a nossa palidez!
Ele a mim se assemelha: é ermo e trist.
No jardim, no quintal, no chão, no teto
em tudo a mesma semelhança existe.
No tempo, entanto, aos céleres arrancos,
o seu telhado vai ficando preto
e os meus cabelos vão ficando brancos
Impasse
Se ficar onde estou não faço nada,
Se sair por aí corro perigo,
Se me calo minhalma é sufocada,
Se disser o que sei faço inimigo...
Se pensar vou trair a madrugada
E se sonho demais vem o castigo,
Se quiser subo até o fim de escada,
Mas precisa brigar, e eu não brigo!
Se cantar atropelo o contracanto,
Se não canto maltrato o coração,
Se me faço sofrer me desencanto,
Se reprimo o ideal perco a razão,
Se perder a razão, resta-me o pranto
E meu pranto não faz uma canção.
Extraído da revista POESIA SEMPRE, Número 29, Ano 15, 2008, edição Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
http://apaginadolivro.blogspot.com/2009/04/alex-polari.html por Antonio Miranda
(João Pessoa - PB, 1951). Teve publicado seu primeiro livro de poesia, Inventário de Cicatrizes, em 1978. Na época, estava preso; por sua militância política contra o regime militar brasileiro, permaneceu na prisão entre 1971 e 1980. Seu segundo livro, Camarim de Prisioneiro, saiu em 1980. No início dos anos de 1980 passou a fazer parte da comunidade esotérica Santo Daime, no Amazonas. Na poesia de Alex Polari, de tendência contemporânea, se manifestam de maneira forte e direta experiências de cárcere, de tortura. Para o crítico Carlos Henrique de Escobar, ?Alex político e Alex poeta, como alguns dos seus muitos companheiros em diferentes prisões do país, alguns já libertados, outros exilados, poderão significar toda uma postura e uma produção artística (na poesia, na pintura e no romance) que rompe com os padrões estéreis e reacionários de até então."
Fonte: www.itaucultural.org.br/
"A poesia de Alex não se formaliza de fora, não se organiza à margem de suas motivações e propósitos - ela é inseparável do que diz, na forma pela qual se expressa e que é formidavelmente diversa tanto do espírito autoritário e escolar do experimentalismo de direita quanto do populismo altissonante mas insípido dos ´nossos´ poetas editados e reeditados pela máquina editorial e publicitária do reformismo. Fluente em sua forma, imediata em sua captação, lúcida e transparente, a poesia de Alex chega-nos desde os cárceres políticos da Ditadura, das suas salas de tortura, numa linguagem direta, franca e rigorosamente cuidada. É possível hoje retomar a história da nossa poesia, de 22 para cá, e mostrar como suas formas e impasses são dominantemente inseparáveis das formas mesmas que a história política do país vai tomando. Nesse sentido Alex político e Alex poeta, como alguns dos seus muitos companheiros em diferentes prisões do país, alguns já libertados, outros exilados, poderão significar toda uma postura e uma produção artística (na poesia, na pintura e no romance) que rompe com os padrões estéreis e reacionários de até então."
Carlos Henrique de Escobar (1978)
“Comprei o Inventário de Cicatrizes na época de seu lançamento para colaborar com o Comitê Brasileiro pela Anistia. Eu havia regressado da Inglaterra sem concluir o meu doutorado (a Capes não me concedeu a bolsa que complementaria a que eu tivera com o British Council, mesmo havendo recebido um prêmio pela dissertação de mestrado...)
porque havia contra mim um dossiê acusando-me de ter escrito poemas anti-militares durante meu auto-exílio na Venezuela anos antes, no início da Ditadura Militar. Estava com um romance no prelo – A Quadratura do Ó – que tinha umas cenas sobre tortura no regime militar... Vi com extrema simpatia a publicação do livro de Alex Polari de Alverga, um preso político, mesmo sem ter qualquer informação sobre sua poesia. Houve uma identificação automática com ele.
A leitura da obra foi pura emoção. Independentemente do mérito literário. A confissão de um poeta prisioneiro do regime, relatando torturas e privações, numa linguagem absolutamente sem rebuscamento, sem apelações ideologizantes, até com certo escárnio e humor, era pungente. Estava além da literatura. Assim entendi o prefácio de Carlos Henrique de Escobar que, com certo viés, fazia tabula rasa de toda a poesia brasileira da época – desde modernismo, passando pela Geração 45 e vanguardismos concretizantes de meados do século – e exaltando a obra do poeta no cárcere. Estava ele condenado, depois de torturas humilhantes, a 80 anos de pena. Como não ficar emocionado com aqueles versos crus, irônicos, alguns tão bem construídos como os do poema “Foices”?
Reencontro o livro em minha biblioteca da Chácara Irecê e a releitura teve um impacto sem o peso da consciência – o autor já estava em liberdade há cinco lustros -, mais maduro do que nos idos de 70 e com o distanciamento brechtiano necessário para o julgamento da obra. A emoção continuou forte, em parte por ferir os nervos da memória... mas também pela singeleza mordaz dos versos, pelo descarnamento da linguagem, pela tom confessional com certa perquirição e até mesmo um senso crítico que, sendo o poeta jovem e vivenciando sua própria tortura levada à poesia, que resulta surpreendente. Do ponto de vista formal, percebe-se uma certa desigualdade, coisa comum na maioria dos livros de poetas em geral... Um confessionismo às vezes ingênuo, algumas reflexões incipientes mas sempre num conjunto impressionante pelo despojamento de linguagem, por um coloquialismo que dá frescura e autenticidade aos textos, aliviando-os da pieguice e do fanatismo. Cresce na leitura uma figura humana extraordinária, avançada, arejada. Admirável. É com este espírito e admiração que seleciono os poemas que considero exponenciais no conjunto de sua obra inicial. Infelizmente, não tive (ainda) acesso ao seu livro mais recente para aquilatar o crescimento do autor e para entender seu posterior envolvimento com o Santo Daime.
Antonio Miranda, fevereiro 2007
FOICES
E fosse o vento
como rajada
fio de foice
rente ao horizonte
cortando espigas e auroras.
E fosse fosco
o vidro que nos separasse
da paisagem
assim semeador
vulto impreciso pelas grades
colher o que?
que fímbria de esperança
que migalhas de posteridade
disputar com os ratos?
ZOOLÓGICO HUMANO
o que somos
é algo distante
do que fomos
ou pensamos ser.
Veja o mundo:
ele se move
sem nossa interferência
veja a vida:
ela prossegue
sem nossa licença
veja sua amiga:
ela se comove
por outros corpos
que não o seu.
Somos simplesmente
o que é mais fácil ser:
lembrança
sentimento fóssil
referência ética
apenas um belo ornamento
para a consciência dos outros.
A quem interessar possa:
Estamos abertos à visitação pública
sábados e domingos
das 8 às 17 horas.
Favor não jogar amendoim.
Extraídos de INVENTÁRIO DE CICATRIZES. 3 ed. São Paulo: Teatro Ruth Escobar; Comitê Brasileiro pela Anistia, 1978. 58 p.
Nasceu em Patos, no Sertão paraibano, em 22 de abril de 1974, e está radicada em João Pessoa desde a década de 90. Além de poeta, é jornalista profissional. Recebeu menção honrosa no concurso de Poesia do Sesc João Pessoa, participou da Antologia Contemporânea da Poesia Paraibana, editada pelo O Sebo Cultural em 1995, obteve o segundo lugar no Festival Amapaense de Poesia, em 1998, e publicou, junto com os poetas André Ricardo Aguiar, Fausto Costa e Karina Grace e brochura “Quadrifólio’. Atualmente, organiza a publicação de seu primeiro livro de poemas.
“Angélica Lúcio trabalha com rigor e economia nas palavras. Há em seus poemas um tenso equilíbrio entre o elemento mineral, que serve de referência à maioria das imagens, e a inquietude de uma alma que oscila entre os apelos da carne e a salvação.”
Francisco José Gomes Correia (Chico Viana), Universidade Federal da Paraíba
Pétrea
Por vezes,
me sinto pedra
pele salgada
sob a língua vermelha
em esgares de náufrago
estátua translúcida
sumindo em saliva:
a eterna mulher de Lot.
Pérola
Minha dor é molusco
e se faz de ostra:
sempre me enclausura.
Brinca com hipocampos,
faz cócegas em Netuno
e me quer sua filha.
Talvez uma pérola.
Sacrossanta
Se sois santo
havereis
de me querer
todos os dias
- corpo e hóstia –
Aos teu pés
Imolando-me no altar
se santo não sois
por que havereis
de me querer
pura e pedra
e também sacrossanta
por que não esfinge
- pronta a te devorar?
Antífonas
Não sou fraca por obra de Deus
em mim, os seios pedem abrigo
as dobras do corpo, flagelação
por isso, valho-me de rezas,
terços e xaropes
e me desdobro em antífonas:
antes o gozo do que a morte
antes o cancro do que a salvação.
O gato
O olho do gato
tem outro gato
no espelho
tem outro pêlo
no fio
tem outra lida
no sê-lo
tem outra vida
no cio
tem outra luta
no relho
o olho do gato
não sabe da vida
um fio
não sabe da noite
um pêlo.
Tessituras
Se me esqueço
em novelo de dedos
não me fio em roca e fuso
de tessituras alheias.
Ainda que fique sem pão
colher de pau e jasmim
tapete de tez vermelha
ventilador e dentifrício,
Ainda que perca o elo,
não me fio
e me fecho em minotauro.
Filhos
Meu pai
pensava filhos
como se quisesse açude
pomar curral e galinhas
fazia filhos
como se pensasse
em sítio:
de sua carne.
Extraído de ANTOLOGIA SONORA – Poesia Paraibana Contemporânea. João Pessoa: Edições O Sebo Cultural, 2009. Produção executiva de Heriberto Coelho de Almeida. Contendo 9 CD com gravações de poemas nas vozes dos autores, e 31 encartes em caixa de madeira. ISBN 978-278-995423
Página publicada em novembro de 2009, a partir do material cedido pelo Editor.
retirado para este BLOG http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/paraiba/angelica_lucio.html