sábado, dezembro 02, 2006

natalia correia

A Defesa do Poeta


Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto


Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim


Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes


Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei


Senhores professores que puseste
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição


Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis


Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além


Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem ?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem ?


Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa


Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho !
a poesia é para comer.


*





FALAVAM-ME DE AMOR

Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,

menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.



Natália Correia
O Dilúvio e a Pomba
Lisboa, Publicações D. Quixote, 1979


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Natália Correia











Natália Correia nasceu a 13 de Setembro de 1923 na Ilha de São Miguel, nos Açores. Veio estudar para Lisboa ainda criança e cedo iniciou a sua actividade literária. Poetisa, ficcionista, ensaísta, tradutora, dividiu a sua criatividade pelo teatro e pela investigação literária.

Empenhada politicamente, viu vários dos seus livros serem apreendidos pela censura, chegando a ser condenada a três anos de prisão com pena suspensa, acusada de abuso de liberdade de imprensa.

Morreu em Lisboa a 16 de Março de 1993.

A sua vasta obra poética encontra-se reunida em Poesia Completa: O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, 1993. Natália Correia é ainda autora de obras como A Ilha de Circe (ficção), 1983; Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (teatro), 1981; Uma Estátua para Herodes (ensaio), 1974.

Ouça alguns poemas seleccionados de Natália Correia-Poesia Completa e leia Soneto de Abril, que demonstra o empenhamento político da poetisa.

Pode ainda ler uma recensão sobre o Auto da Feiticeira Cotovia.

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