segunda-feira, junho 27, 2011

Lêdo Ivo AL




































RETIRADO DE ANTONIO MIRANDA

Lêdo Ivo
POESIA COMPLETA 1940-2004
Estudo introdutório Ivan Junqueira
Rio de Janeiro: Topbokks, 2004. 1099 p.
ISBN 85-7475-086-1

"Um dos poucos que ficarão". Fausto Cunha.


PRIMEIRA LIÇÃO

Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.

Ao ficar rapaz
Ivo viu a Eva
e aprendeu a amar.

E sendo homem feito
Ivo viu o mundo
seus comes e bebes.

Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.

E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?

Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.


NA RUA DA CARIOCA

Transeunte ocioso
parei na mercearia
da rua da Carioca
e vi a realidade:
uma simples lingüiça
exposta na vitrina.

Ó glória de ser si mesma
na inexatidão do mundo!
Somente ela era real
entre os passantes fantásticos
e os rumores estridentes
da rua da Carioca.

No balcão de imaginário
em que se tornou a vida
uma simples lingüiça
toda enchida de si mesma
impunha a sua verdade
e modéstia perecíveis.

Jamais uma lingüiça
pode mudar-se em metáfora
antes de ser engolida.
Evidência consumível,
ela era apenas o que era:
a honra do mundo visível.


LARGO DA CARIOCA

Sobe a ladeira do convento
antes que a noite caia.
Pede um marido a Santo Antônio
que a tarde já vai bem alta.

Pede um amor a Santo Antônio
antes da noite fechada.
Suplica-lhe que ele te dê
uma aliança de casada.

Diante do santo, de joelhos,
antes que a noite desça,
fala da tua precisão,
antes que o sol desapareça.

Não tenhas medo nem pejo
nem fiques ruborizada.
Ele conhece os desejos
que queimam teu corpo e alma.

O santo das precisadas
sendo um homem não ignora
que a falta do acerbo espinho
dói na rosa abandonada.

Confessa-lhe toda a verdade.
Para dormir sossegada
precisas daquilo que pedes
de rojo, lavada em lágrimas.

Precisas de algo que te aqueça.
À noite morres de frio.
Implora ao santo, com fervor,
que te conceda um cobertor.

Antes que o sol desapareça
e a noite te deixe na mão
pede depressa a Santo Antônio
a graça de um maridão.


A CREPITAÇÃO

Qualquer vida é naufrágio e perdimento.
Quando chegamos ao fim da restinga
encontramos apenas mar e vento.

Onde estão nossos sonhos? Um errante
raio de sol sumiu entre a folhagem,
dentro de nós o dia fez-se pálido.

Cercado pela luz da madrugada
e de mim rodeado, estou sozinho
entre as grutas da terra e a ira do mar.

Última luz da derradeira festa,
crepita na manhã a eternidade.
E a eternidade é tudo o que me resta.


PARIPUEIRA

Nas casas brancas de Paripueira
as janelas estão escancaradas
à claridade que sucede aos sonhos
e às errantes estrelas desejadas.

Os cajueiros cantam na manhã de sol.
Cantam com suas belas vozes amarelas.
As velas das jangadas fremem quando
a vaga suga a música da terra.

No céu redondo de Paripueira
as nuvens são os brancos arquipélagos
dos países negados aos navios.

No mar azul os currais de peixe
protegem a fome infindável dos homens.
E a terra é tão bela que aboliu a morte.

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OS MORCEGOS

Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteiro no escuro,
chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
"Estes filhos chupam o nosso sangue", suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz
do farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.
Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda
o dia ofendido.

Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.
Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.
E entre os nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.


OS POBRES NA ESTAÇÃO RODOVIÁRIA

Os pobres viajam, Na estação rodoviária
eles alteiam os pescoços como gansos para olhar
os letreiros dos ônibus. E seus olhares
são de quem teme perder alguma coisa:
a mala que guarda um rádio de pilha e um casaco
que tem a cor do frio num dia sem sonhos,
o sanduíche de mortadela no fundo da sacola,
e o sol de subúrbio e poeira além dos viadutos.
Entre o rumor dos alto-falantes e o arquejo dos ônibus
eles temem perder a própria viagem
escondida no névoa dos horários.
Os que dormitam nos bancos acordam assustados,
embora os pesadelos sejam um privilégio
dos que abastecem os ouvidos e o tédio dos psicanalistas
em consultórios assépticos como o algodão que
tapa o nariz dos mortos.
Nas filas os pobres assumem um ar grave
que une temor, impaciência e submissão.
Como os pobres são grotescos! E como os seus odores
nos incomodam mesmo à distância!
E não têm a noção das conveniências, não sabem
portar-se em público.
O dedo sujo de nicotina esfrega o olho irritado
que do sonho reteve apenas a remela.
Do seio caído e túrgido um filete de leite
escorre para a pequena boca habituada ao choro.
Na plataforma eles vão o vêm, saltam e seguram
malas e embrulhos,
fazem perguntas descabidos nos guichês, sussurram
palavras misteriosas
e contemplam os capas das revistas com o ar espantado
de quem não sabe o caminho do salão da vida.
Por que esse ir e vir? E essas roupas espalhafatosas,
esses amarelos de azeite de dendê que doem
na vista delicada
do viajante obrigado a suportar tantos cheiros incômodos,
e esses vermelhos contundentes de feira e mafuá?
Os pobres não sabem viajar nem sabem vestir-se.
Tampouco sabem morar: não têm noção do conforto
embora alguns deles possuam até televisão.
Na verdade os pobres não sabem nem morrer.
(Têm quase sempre uma morte feia e deselegante.)
E em qualquer lugar do mundo eles incomodam,
viajantes importunos que ocupam os nossos
lugares mesmo quando estamos sentados e eles viajam de pé.



O PASSRINHO MORTO

A santidade do mundo me aparece
sob a forma assustada de um esquilo
que me contempla entre arbustos.
Devo esta aparição ao deus que me criou
e me faz notar o miúdo e o insólito.
A poeira na asa da borboleta
E a chuva radiosa.
Abaixo-me e agarro o passarinho morto
que nem a neve soube guardar.
Por que o mataste, ó deus do frio
que, na noite de Nova Iorque, une a homem e mulher.
Como uma formiga, espero que o comboio passe
para atravessar
os trilhos sangrados pela ferrugem.
E, cristaleiro, amo o que o tempo fez
sem que fosse preciso ferir ou insultar:
vaga na prancha podre de um navio
ou o fulgir de um diamante.
A essa forma de perfeição, luminosa e fria,
é que aspiro às vezes quando, no banco de um parque,
vejo o passarinho morto
ou, homem, sou o esquilo que os esquilos
vêm olhar com surpresa.
Aos céus que guardam o granizo e a saraiva,
peço isenção de selo funerário.
Mas como esse deus mouco me ouviria?
Com seus olhos vazados, de que modo
me enxergaria? E as folhas caem, desbotadas, e o outono
é vento e podridão.



ASILO SANTA LEOPOLDINA

Todos os dias volto a Maceió.
Chego nos navios desaparecidos, nos trens sedentos, nos aviões cegos/
Que só aterrizam ao anoitecer.
Nos coretos das praças brancas passeiam caranguejos.
Entre as pedras das ruas escorrem rios de açúcar
Fluindo docemente dos sacos armazenados nos trapiches
e clareiam o sangue velho dos assassinados.
Assim que desembarco tomo o caminho do hospício.
Na cidade em que meus ancestrais repousam em cemitérios marinhos
só os loucos de minha infância continuam vivos e à minha espera.
Todos me reconhecem e me saúdam com grunhidos
e gestos obscenos ou espalhafatosos.
Perto, no quartel, a corneta que chia
Separa o pôr-do-sol da noite estrelada.
Os loucos langorosos dançam e cantam entre as grades.
Aleluia! Aleluia! Além da piedade
a ordem do mundo fulge como uma espada.
E o vento do mar oceano enche os meus olhos de lágrimas.

Benedito Fonteles

REDUPLICADO DE ANTONIO MIRANDA


Artista plástico, poeta e compositor, curador de exposições notáveis, Benedito Fonteles nasceu em Bragança, Estado do Pará, em 1953. Suas atividades levaram-no a diferentes regiões do país. Montou exposições em espaços como a Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museus de Arte Contemporânea do Rio de Janeiro e Curitiba, Museus de Arte de São Paulo e de Brasília, destacando-se as montagens da obra de Ruben Valentin, com a publicação do livro O Artista da Luz, assim também o livro-CD Giluminoso – a poiÉtica do Ser, com a obra de Gilberto Gil, além de dirigir espetáculos e gravações de grandes artistas como Luiz Gonzaga, Tetê Espíndola, Belchior, Egberto Gismonti e tantos outros. Dezenas de exposições individuais, muitas delas de arte e ecologia, além de promover seminários e oficinas de criatividade.

Também é notável como poeta., de que damos uma breve mostra aqui, em parte retirada da antologia de Olga Savary Poesia do Grão-Pará e de O Livro do Ser.


QUASE HAI-KAIS
(década de 80/90)


A pedra que arremessas
apenas confronta a nuvem.

*

Deus cabe nas pedras
As pedras não cabem em si.

*

Vento que passa
Roça a pedra que fica.

*

Só o Real do lúdico
ilumina o Dom do lúcido.

*

Só ele escutava
a felicidade dos peixes.

*

Nenhum anseio vela
o barco da mente simples.

Aprenda do bambu
que o bambu
— É bambu!

*

Lótus e lodo
Diferenças sutis
à luz da lua.


***************

De
O LIVRO DO SER
Petrópolis: Vozes, 1995

a alegria dos peixes
sou
EU]
eu sou as carpas que dançam
na co de teus olhos
a alegria que faz nadar
os feixes de escamas
e
LUZ
e deixar o rio NU
completamente à vontade
com seu dom de correnteza
a leveza
a voz
e a vez das águas

Roda Viva | José Saramago | 13/10/2003 para não esquecermos

um pensador, um alucinado,como todo grande escritor e que questiona o próprio instrumento que se vale para ser JOSÉ SARAMAGO.Um ensaista da ...