segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Pranto por Ignácio Sánchez Mejías----Federico García Lorca

A CAPTURA E A MORTE

Às cinco horas da tarde.
Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o lençol branco
às cinco horas da tarde.
Um cesto de cal já prevenida
às cinco horas da tarde.
O mais era morte e apenas morte
às cinco horas da tarde.

O vento arrebatou os algodões
às cinco horas da tarde.
E o óxido semeou cristal e níquel
às cinco horas da tarde.
Já pelejam a pomba e o leopardo
às cinco horas da tarde.
E uma coxa por um chifre destruída
às cinco horas da tarde.
Os sons já começaram do bordão
às cinco horas da tarde.
As campanas de arsênico e a fumaça
às cinco horas da tarde.
Pelas esquinas grupos de silêncio
às cinco horas da tarde.
E o touro todo coração ao alto
às cinco horas da tarde.
Quando o suor de neve foi chegando
às cinco horas da tarde,
quando de iodo se cobriu a praça
às cinco horas da tarde,
a morte botou ovos na ferida
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Às cinco em ponto da tarde.

Um ataúde com rodas é a cama
às cinco horas da tarde.
Ossos e flautas soam-lhe ao ouvido
às cinco horas da tarde.
Por sua frente o touro já mugia
às cinco horas da tarde.
O quarto se irisava de agonia
às cinco horas da tarde.
A gangrena de longe já se acerca
às cinco horas da tarde.
Trompa de lis pelas virilhas verdes
às cinco horas da tarde.
As feridas queimavam como sóis
às cinco horas da tarde,
e as pessoas quebravam as janelas
às cinco horas da tarde.
Ai que terríveis cinco horas da tarde!
Eram as cinco em todos os relógios!
Eram cinco horas da tarde em sombra!

2

O SANGUE DERRAMADO

Não quero vê-lo!

Dize à lua que venha,
que não quero ver o sangue
De Ignacio sobre a areia.

Não quero vê-lo!

A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas,
e a praça cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.

Não quero vê-lo!
Que se me queima a recordação.
Avisai aos jasmins
com sua brancura pequena!

Não quero vê-lo!

A vaca do velho mundo
passava a língua triste
sobre um focinho de sangues
derramados sobre a areia,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra.
Não.
Não quero vê-lo!

Pelos degraus sobre Ignacio
com toda sua morte às costas.
Buscava o amanhecer,
e o amanhecer não era.
Busca o seu perfil seguro,
e o sonho o desorienta.
Buscava o seu formoso corpo
E encontrou seu sangue aberto.
Não me digais que o veja!
Não quero sentir o jorro
cada vez com menos força;
esse jorro que ilumina
os palanques e se verte
sobre a pelúcia e o couro
de multidão sedenta.
Quem grita que eu apareça?
Não me digais que o veja!

Não se fecharam seus olhos
quando viu os chifres perto,
mas as mães terríveis
levantaram a cabeça.
E através das manadas,
houve um ar de vozes secretas
que gritavam a touros celestes,
maiorais de pálida névoa.
Não houve príncipe em Sevilha
que comparar-se-lhe possa,
nem espada como a sua espada
nem coração tão deveras.
Como um rio de leões
sua maravilhosa força,
e como um torso de mármore
sua marcada prudência.
Um ar de Roma andaluza
lhe dourava a cabeça
onde seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.

Que grande toureiro na praça!
Que grande serrano na serra!
Quão brando com as espigas!
Quão duro com as esporas!
Quão terno com o rocio!
Quão deslumbrante na feira!
Quão tremendo com as últimas
bandarilhas tenebrosas!

Porém já dorme sem fim.
Já os musgos e já a erva
abrem como dedos seguros
a flor de sua caveira.
E o sangue já vem cantando:
cantando por marismas e pradarias,
resvalando por chifres enregelados,
vacilando sem alma pela névoa,
tropeçando com cascos aos milhares
como uma longa, escura, triste língua,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir das estrelas.
Oh! branco muro de Espanha!
Oh! negro touro de pena!
Oh! sangue duro de Ignacio!
Oh! rouxinol de suas veias!
Não.
Não quero vê-lo!
Não há cálice que o contenha,
não há andorinhas que o bebam,
não há escarcha de luz que o esfrie,
não há canto nem dilúvio de açucenas,
não há cristal que o cubra de prata.
Não.
Eu não quero vê-lo!!

3

CORPO PRESENTE

A pedra é uma fronte onde os sonhos gemem
sem água curva nem ciprestes gelados.
A pedra é uma espádua para levar o tempo
com árvores de lágrimas e cintas e planetas.

Eu vi chuvas cinzentas correrem rumo às ondas
levantando seus ternos brancos esburacados,
para não ser caçadas pela pedra estendida
que desfaz seus membros sem se empapar de sangue.

Porque a pedra recolhe sementes e nuvens,
ossadas de calhandras e lobos de penumbra;
mas não produz sons, nem cristais, nem fogo,
senão praças e praças e outras praças sem muros.

Já está sobre a pedra Ignacio, o bem-nascido.
Já se acabou; o que acontece? Contemplai a sua figura:
a morte o cobriu de pálidos enxofres
e pôs-lhe uma cabeça de escuro minotauro.

Já se acabou. A chuva penetra-lhe pela boca.
O ar como louco escapa de seu peito afundado,
e o Amor, empapado de lágrimas de neve,
se aquece no topo dos currais.

Que dizem? Um silêncio com fedores repousa.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara onde rouxinóis havia
e vêmo-la encher-se de buracos sem fundo.

Quem enruga o sudário? Não é verdade o que diz!
aqui ninguém mais canta, nem chora lá no lado,
nem aplica as esporas, nem espanta a serpente:
aqui não quero nada mais que os olhos redondos
para ver esse corpo sem possível descanso.

Eu quero ver aqui os homens de voz dura.
Os que domam cavalos e dominam os rios:
os homens cuja ossada ressoa, e cantam
com uma boca cheia de sol e pedernais.

Aqui eu quero vê-los. Diante da pedra.
Diante deste corpo com as rédeas arrebentadas.
Eu quero que me mostrem onde está a saída
para este capitão atado pela morte.

Eu quero que me mostrem um pranto com um rio
que tenha doces névoas e praias profundas,
para levar o corpo de Ignacio e que se perca
sem escutar o duplo resfolegar dos touros.

Que se perca na praça redonda da lua
que finge ao ser menina dolente rês imóvel;
que se perca na noite sem canto dos peixes
e na maleza branca do fumo congelado.

Não quero que lhe tapem o rosto com lenços
para que se acostume com a morte que leva.
Vai-te, Ignacio: Não ouças o candente bramido.
Dorme, voa, repousa: O mar também morre!

4

ALMA AUSENTE

O touro não te conhece, nem a figueira,
nem cavalos nem formigas de tua casa.
O menino não te conhece, nem a tarde,
porque morreste para sempre.

O lombo da pedra não te conhece,
nem o chão negro em que te destroças.
Nem te conhece a tua recordação muda,
porque morreste para sempre.

O outono virá com caracóis,
uva de névoa e montes agrupados,
mas ninguém quererá mirar teus olhos,
porque morreste para sempre.

Porque morreste para sempre,
como todos os mortos da Terra,
como todos os mortos que se olvidam
em um montão de cachorros apagados.

Ninguém te conhece. Não. Porém eu te canto.
Eu canto sem tardança teu perfil e tua graça.
A madureza insigne do teu conhecimento.
A tua apetência de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve a tua valente alegria.

Tardará muito tempo em nascer, se é que nasce,
um andaluz tão claro, tão rico de aventura.
Canto-lhe a elegância com palavras que gemem
E recordo uma triste brisa nos olivais.
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