sexta-feira, agosto 27, 2010

EU COMECEI A MENTIR POR PRECAUÇÃO

Silviano Santiago


Em texto confessional, teórico investiga os caminhos da autoficção

Em dois dos últimos livros de ficção que publiquei - O falso mentiroso (2004) e Histórias mal contadas (2005) -, tentei dar corpo textual a quatro questões constitutivas do que tem sido para mim o exercício da literatura do eu, ou para usar a nova terminologia, o exercício da autoficção – as questões da experiência, da memória, da sinceridade e da verdade poética.
Se pedisse ajuda a João Cabral de Melo Neto, estas palavras trariam como título e intenção “Meditação sobre o ofício de criar”. Ao poeta pernambucano peço de novo ajuda para acrescentar que a meditação “nada tem de pregação e sequer da sugestão de receitas possíveis”.
No meu caso, cheguei à autoficção através de um longo processo de diferenciação, preferência e contaminação. Falo primeiro e ao mesmo tempo dos processos de diferenciação e de preferência. Parti da distinção entre discurso confessional e discurso autobiográfico. O discurso propriamente confessional está ausente de meus escritos. Nestes não está em jogo a expressão despudorada e profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros por tantos escritores de índole romântica ou neorromântica.
Já os dados autobiográficos percorrem todos meus escritos e, sem dúvida, alavanca-os, deitando por terra a expressão meramente confessional. Os dados autobiográficos servem, pois, de alicerce na hora de idealizar e compor meus escritos e, eventualmente, podem servir ao leitor para explicá-los. Traduz o contato reflexivo da subjetividade criadora com os fatos da realidade que me condicionam e os da existência que me conformam.
Não nos iludamos, a distinção entre os dois discursos tem, portanto, o efeito de marcar minha familiaridade criativa com o autobiográfico e o consequente rebaixamento do confessional ao grau zero da escrita.
Como tenho me valido do discurso autobiográfico nos meus escritos ficcionais? Para responder à pergunta, passemos ao terceiro processo, o da contaminação.
Ao reconhecer e adotar o discurso autobiográfico como força motora da criação literária, coube-me levá-lo a se deixar contaminar pelo conhecimento direto – atento, concentrado e imaginativo – do discurso ficcional da tradição ocidental. Com a exclusão da matéria que constitui o meramente confessional, o texto híbrido, constituído pela contaminação do discurso autobiográfico pelo discurso ficcional – e do ficcional pelo autobiográfico -, marca a inserção do tosco e requintado material subjetivo meu na tradição literária ocidental e indicia a relativização por esta de seu anárquico potencial criativo.
Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional no Ocidente) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido.
A distinção entre discurso confessional e discurso autobiográfico ganhou corpo textual em momento antigo no tempo, quando comecei a conjugar minha própria experiência infantil de vida com o auxílio dos verbos de minha memória. Ou seja, a distinção entre confissão e autobiografia foi feita desde a mais tenra infância e existiu em mim, e desde sempre existe, como força a alavancar a imaginação criadora.
A preferência pelo discurso autobiográfico e a consequente contaminação dele pelo discurso ficcional se tornou prática textual, no momento em que o menino/sujeito teve a imperiosa necessidade de jogar o confessional para o inconsciente e aliar a fala de sua experiência de vida à invenção ficcional. A contaminação do biográfico com o confessional se tornou prática propriamente literária num segundo momento, ou seja, quando o adolescente/sujeito revisitava as práticas textuais híbridas da infância para torná-las, através da letra impressa do jornal ou do livro, de domínio público. Ao revisitá-las pelo exercício da memória, o aprendiz de escritor tenta apreender o modo de expressão da infância com o fim de equacionar o desejo de criar narrativas literárias que signifiquem no universo cultural brasileiro. Muita pretensão? Talvez sim, talvez não.
Portanto, vale a pena pagar uma visita ao menino antigo.
Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe – não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o discurso confessional. Não estou querendo dizer que minha personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição.

dados camuflados
Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de menino-suicida e de menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas subjetividades similares à confessional, passíveis de serem jogadas com certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. O menino criava falas autobiográficas que não eram confessionais, embora partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda prematura da mãe. Já eram falas ficcionais e, como tal, coexistiam aos montões. Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora estivessem a retirar o poder de fabulação da autobiografia. O dado confessional que poderia chegar à condição plena ficava encoberto, camuflado, para usar a linguagem da Segunda Grande Guerra, então dominante. Não tinha interesse em escarafunchá-lo. Os fatos autobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala confessional, visto que já se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional.
Não estou querendo dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional - a morte da mãe. Vivia-o. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos com o exemplo religioso.
Meu pai não era católico praticante, mas nos obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos sábados, diante do padre-confessor de sotaque germânico, no escurinho protegido pelas grades do pseudoanonimato, tinha de fazer exame de autoconsciência e ser sincero ao enumerar e confessar os pecados da semana. Costumava trazê-los escritos numa folha de papel. Uma pitada de paranoia, e acrescento que os pecados eram muitos e, perdão pelo trocadilho, inconfessáveis.
Apesar da lista avantajada, não proferia no confessionário uma fala sincera, confessional. Mentia ao padre-confessor. Ficcionalizava o sujeito – a mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da lista. Inventava para mim e para o padre-confessor outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e intenções reprováveis permaneciam camufladas pela fala.
Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou autoficções, como digo hoje, tinham estatuto de vivido, tinham consistência de experiência, isso graças ao fato maior que lhes antecedia – a morte prematura da mãe - e garantia a veracidade ou autenticidade. Aos sábados, diante do padre-confessor, assumia uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional – verossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na verdade, o ser plenamente. O menino ao confessionário já era um falso mentiroso.
Na infância, eu já era multiplicadoramente confessional e sincero, era autoficcionalmente confessional e sincero. O discurso confessional – que, no meu caso, repito, nunca existiu no domínio público – se articulava e se articulou desde sempre pela multiplicação explosiva dos discursos autobiográficos que faziam pacto com o ficcional. O discurso confessional – que na verdade não o era, era apenas um lugar vazio, desesperador, preenchido por discursos híbridos - só poderia estar plena e virtualmente num feixe discursivo, numa soma em aberto de discursos autoficcionais, cujo peso e valor final seriam de responsabilidade do padre-confessor – e, hoje, do meu leitor. Ao padre-confessor ontem e ao leitor hoje passava e passo algumas histórias mal contadas.
As histórias – todas elas, eu diria num acesso de generalização – são mal contadas porque o narrador, independentemente do seu desejo consciente de se expressar dentro dos parâmetros da verdade, acaba por se surpreender a si pelo modo traiçoeiro como conta sua história (ao trair a si, trai a letra da história que deveria estar contando). A verdade não está explícita numa narrativa ficcional, está sempre implícita, recoberta pela capa da mentira, da ficção. No entanto, é a mentira da ficção, ou a ficção da verdade, que narra poeticamente a verdade ao leitor.
Para terminar, leio parte dum fragmento de “Sem aviso”, texto assinado por Clarice Lispector: “Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser precavida, e depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso – já atordoada eu sentia – era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta”. Permitam-me a glosa. No confessionário, o sujeito começou a mentir por prudência e cautela e, como a realidade ambiente o incitava a ser prudente e cauteloso, continuou a mentir descaradamente. E tanto mentia que já mentia sobre as mentiras que tinha inventado. E a tal ponto mente que a mentira se torna o meu modo mais radical de ser escritor, de dizer a verdade que lhe é própria, de dizer a verdade poética.

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