segunda-feira, dezembro 19, 2016

Poesia pode ser que seja fazer outro mundo: uma homenagem ao centenário do poeta Manoel de Barros

                                   ( foto arquivo da Família, Manoel de Barros)
        
                                                                           Por Elton Luiz Leite de Souza[1]
                                     

- O fazer do poeta
"Poesia pode ser que seja fazer outro mundo" é um verso do próprio Manoel[2].  Mil sentidos podem ser extraídos dele, pois inesgotável é sua riqueza. Acreditamos que a ênfase deve ser colocada no “fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta, tangível, reconhecível, etiquetável, prestes a virar propriedade de um dono. Sempre haverá mundo para a poesia fazer, a poesia mais necessária é prática de fazer outros mundos: mundos políticos, psíquicos, oníricos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre múltiplos. É desse fazer que o poeta deseja ser o dono, não do mundo: "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve"[3], diz o poeta.
Se estivesse vivo, Manoel de Barros completaria 100 anos em 2016.  Mais precisamente, no dia 19 de dezembro. Esse número tão expressivo parece contrastar com a imagem que o poeta imprimiu à sua obra. Não são as datas e a passagem do tempo que o interessam, mas “as origens que renovam”[4].Na ponta do meu lápis, diz o poeta, “há apenas nascimento”[5].Quanto mais o tempo passa, mais a obra de Manoel de Barros parece nos encantar como seus inauguramentos, seus exercícios de ser criança : “Quem é quando criança a natureza nos mistura com suas árvores, com as suas águas , com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência”[6].
Inspirados pela característica plural da poética de Manoel de Barros quisemos fazer um evento-homenagem também plural, transdisciplinar, reunindo pesquisadores, poetas, artistas, enfim, profissionais que encontraram na obra do poeta um caminho para a invenção de ideias: na música, na dança, no pensamento, na arte , enfim, na vida.
É de se notar, hoje, a variedade de campos envolvidos nas produções acadêmicas que tomam o poeta como tema. Além da Teoria Literária, há estudos em Filosofia, Dança, Geografia, Psicologia, Pedagogia, Museologia, Teatro....Essa pluralidade expressa a riqueza de uma poética que ainda se oferece por descobrir, exigindo um rico trabalho de diálogo interdisciplinar em sua hermenêutica.
O evento desejou contribuir para a divulgação de um pensador originalíssimo de nossa cultura, com influência crescente nas mais diversas áreas da vida brasileira. Apesar do reconhecimento midiático, a poética de Manoel ainda é relativamente pouco conhecida e estudada, e falar dela também é, sem dúvida, pensar nossa sociedade, nossa linguagem e as formas plurais mediante as quais produzimos conhecimento. Essa é a originalidade do poeta: uma simplicidade sem pose, uma simplicidade múltipla, pois toda autêntica simplicidade é vária, com-plexa: múltiplas coisas estão dobradas e implicadas nelas.

- A simplicidade de Manoel
Sim-plex: “sem dobra”, literalmente. Com-plexo: “com muitas dobras”. Ex-pli-car: “trazer para fora da dobra, desdobrar”. Em latim, dobra se diz “pli”. Um ser sem dobra não é exatamente algo reto. O autêntico simples sempre permanece ligado ao complexo, tal como o fio de Ariadne que , desdobrado, permanece  unido à complicatio de seu novelo. E nesse novelo estão implicadas todas as narrativas, estão implicadas todas as narrativas que salvam, que criam percurso e inauguram linhas de fuga. A linha reta, ao contrário, não tem novelo: “a expressão reta não sonha”[7]. Uma linha, dizem, é feita de pontos. Mas o ponto é o falso simples, um simples meramente matemático. No começo não está o simples: o simples somente surge   como o produto cujo agente o desdobra de uma complicatio, de algo complexo, como um “afloramento de falas”[8]. Somente encontramos o simples após uma explicação, e não antes dela. Tampouco existe o complexo sem o simples, e o simples sem o complexo.
Singularizar é intensificar. Cada um explica o que lhe está implicado de acordo com a potência que tem. Toda explicação potente é uma forma em rascunho que explica uma potência que nunca é puramente formal. Uma ideia, não importa qual, é uma expressão: ela implica algo e dá a possibilidade de ser explicada por aquele que a  vive. E aquele que a vive também explica a si mesmo naquilo que ele explica e vive.
Os estudiosos da vida nos dizem que aquilo que chamamos de “órgãos” são, na verdade, dobras. O cérebro, por exemplo, é dobra sobre dobra sobre dobra...O cérebro é todo dobrado sobre si mesmo. O cérebro é uma complicatio, porém simples é a ideia que faz pensar e ensina, educa. O pulmão também é uma dobra: dobra essa feita de dobras. Quando se desdobra fisicamente um pulmão, ele vira uma superfície do tamanho de uma quadra de tênis. Assim, no horizonte  de uma dobra não está a altura nem a profundidade, tampouco o ponto; no horizonte de uma dobra está uma superfície. Não o superficial, mas a superfície. A superfície não é o raso por oposição ao profundo, ela também não é o baixo em contraste com o alto das alturas metafísicas. A superfície é a horizontalidade enquanto espaço aberto de conexões e agenciamentos.
 Não raro, há alturas superficiais, bem como profundidades também superficiais. Na origem da dobra não está a linha ou o ponto, está a superfície. Em nós, os afetos estão dobrados; quando os desdobramos, vem expressá-los a superfície do rosto. A onda do mar, por exemplo, também é uma dobra: se esticarmos uma onda descobrimos que ela nasce da superfície do mar. Os simples não são profundos, tampouco ascendem a píncaros. Os simples habitam as superfícies enquanto espaço de travessia e andarilhagem. Os simples habitam a Terra, eles celestam o chão. Os simples são andarilhos que “abastecem de pernas as distâncias”[9].
Os poemas de Manoel , seus livros, são dobras. Em cada poema se encontra a poética inteira, virtualmente dobrada, complicada. Em Manoel não há linearidade, há um desdobrar da “origem que renova”. A origem é a infância que se encontra dobrada no poeta, a qual o poeta desdobra na ponta de seu lápis, bem como no sorriso brincativo sempre a colorir seu rosto idoso.
O poema é uma dobra  porque nele está implicado o que está dobrado junto com tudo. O poema é uma dobra cheia de dobras. Lê-lo é desdobrá-lo, é explicá-lo. Explicar o complexo é devir simples.  Explicamos um poema de acordo com a potência que temos. Porém o que está implicado no poema tem sua própria potência, que pode sempre aumentar a nossa, desde que desejemos devir simples , fazendo viver em nós um sentido , uma questão, que nunca se esgota em uma explicação única, analítica. Ler Manoel é desdobrar o que nele está implicado, e o que está implicado nele está implicado em nós, pois não se trata de letras, mas de ideias, de ideias expressivas. Poetas assim têm uma potência de desdobramento infinita, pois o infinito está implicado nele. E o infinito não começa e nem termina, o infinito possui apenas meio, como a “estrada que põe sentido em mim”[10]. Tais poetas não têm exatamente origem, tampouco precisam “do fim para chegar”[11]. Eles têm horizonte: é de um deslimite que eles nasceram, é por isso que eles nos horizontam.
 Os livros de Manoel, sua poesia, são expressões dessa simplicidade conquistada pelo poeta. Se pudéssemos desdobrá-los, à maneira como se faz com as dobras de um pulmão, teríamos um plano do tamanho da terra, enquanto plano de imanência. Não é um tamanho físico mensurável por réguas, é um tamanho em encantamento, em poder de encantar, o qual não se pode “passar régua”. Na poética de Manoel está implicada a mesma potência que se acha implicada em cada coisa que vive. É em nossa alma unida ao corpo que essa potência se desdobra e se explica, nos explicando, nos singularizando, empoemando-nos.

- Manoel: pop’filósofo
O filósofo Gilles Deleuze intitula pop’filosofia a relação entre o pensar e o sentir, entre a ideia e a sensação, entre o conceito e a imagem. “Pop” como raiz ou prefixo de popular. O popular não é o massificado, o popular não é o que custa barato. Ao contrário, custa muito o popular: custa não em moeda ou capital, mas em modéstia e gosto. O popular não é o que vende muito: o popular é o que não se deixa vender, seja pelo mercado seja pela potesta do Estado. O popular não se opõe ao erudito. O popular não se confunde com classe ou gênero. O popular não é a classe  C, D ou E. O popular é multiplicidade . Povo ao mesmo tempo nobre e menor, como a cartola do Angenor, como o sax de Pixinguinha, como o lápis de Manoel. Quem fala a partir de uma multiplicidade produz um “afloramento de falas”, pois é aflorando em múltiplas falas que a poética de Manoel se torna um agente coletivo de enunciação: “escreve-se em função de um povo por vir e que ainda não tem linguagem”[12].
Na homenagem pretendida simples, por isso com múltiplas e diferentes vozes, orientou-nos sobretudo as peraltagens brincativas  do próprio Manoel presentes no poema Retrato do artista quando coisa: “Esse engenho, pra bem funcionar, havia que estar/ ligado por uma correia aos ventos da manhã./Funcionava ao sabor dos ventos./ Imitava uma instalação./ Mas penso que seja um desobjeto artístico.” Manoel é um desobjeto acadêmico: não há como falar dele estando de fora, “sem contágio”; é preciso se instalar nele e deixar que ele se instale em nós, desabrindo-nos , explicando-nos: “a palavra abriu o roupão para mim, ela quer que eu a seja”[13], afirma o poeta (já se instalando naquilo que se instala nele).





[1] Prof. da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, autor do livro Manoel de Barros: a poética do deslimite, Rio de Janeiro: 7letras, 2010.
[2] Encontros: Manoel de Barros (org. Adalberto Müller), Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 68.
[3] Entrevista concedida ao jornalista José Castello e publicada no site Jornal de Poesia, em 30/05/2005.
[4] Poema “Aprendimentos” , Memórias inventadas – as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta, 2010, p. 109.
[5] Encontros: Manoel de Barros, p. 135.                                                                                       
[6] Manoel de Barros, Memórias inventadas : as infâncias de Manoel de Barros, p. 113.                       
[7] “As lições de R.Q.”, Livro sobre nada.
[8] “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”,  O guardador de águas, p. 62.
[9] Livro de pré-coisas, p. 47.
[10] “Caso de amor”, Memórias inventadas.
[11] Livro sobre nada, p. 71.
[12] DELEUZE, G. Conversações, Editora 34, p. 179.

[13] Livro sobre nada, p. 70.

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