( foto arquivo da Família, Manoel de Barros)
Por Elton Luiz Leite de Souza[1]
- O fazer
do poeta
"Poesia
pode ser que seja fazer outro mundo" é um verso do próprio Manoel[2]. Mil sentidos podem ser extraídos dele, pois
inesgotável é sua riqueza. Acreditamos que a ênfase deve ser colocada no
“fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta,
tangível, reconhecível, etiquetável, prestes a virar propriedade de um dono.
Sempre haverá mundo para a poesia fazer, a poesia mais necessária é prática de
fazer outros mundos: mundos políticos, psíquicos, oníricos, semióticos,
desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre múltiplos. É desse fazer que o
poeta deseja ser o dono, não do mundo: "quem inventa é dono daquilo que
inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve"[3], diz o poeta.
Se
estivesse vivo, Manoel de Barros completaria 100 anos em 2016. Mais precisamente, no dia 19 de dezembro. Esse
número tão expressivo parece contrastar com a imagem que o poeta imprimiu à sua
obra. Não são as datas e a passagem do tempo que o interessam, mas “as origens
que renovam”[4].Na
ponta do meu lápis, diz o poeta, “há apenas nascimento”[5].Quanto mais o tempo passa,
mais a obra de Manoel de Barros parece nos encantar como seus inauguramentos, seus exercícios de ser criança : “Quem é
quando criança a natureza nos mistura
com suas árvores, com as suas águas , com o olho azul do céu. Por tudo isso que
eu não gostasse de botar data na existência”[6].
Inspirados
pela característica plural da poética de Manoel de Barros quisemos fazer um
evento-homenagem também plural, transdisciplinar, reunindo pesquisadores, poetas,
artistas, enfim, profissionais que encontraram na obra do poeta um caminho para
a invenção de ideias: na música, na dança, no pensamento, na arte , enfim, na
vida.
É
de se notar, hoje, a variedade de campos envolvidos nas produções acadêmicas
que tomam o poeta como tema. Além da Teoria Literária, há estudos em Filosofia,
Dança, Geografia, Psicologia, Pedagogia, Museologia, Teatro....Essa pluralidade
expressa a riqueza de uma poética que ainda se oferece por descobrir, exigindo
um rico trabalho de diálogo interdisciplinar em sua hermenêutica.
O
evento desejou contribuir para a divulgação de um pensador originalíssimo de
nossa cultura, com influência crescente nas mais diversas áreas da vida
brasileira. Apesar do reconhecimento midiático, a poética de Manoel ainda é
relativamente pouco conhecida e estudada, e falar dela também é, sem dúvida,
pensar nossa sociedade, nossa linguagem e as formas plurais mediante as quais
produzimos conhecimento. Essa é a originalidade do poeta: uma simplicidade sem
pose, uma simplicidade múltipla, pois toda autêntica simplicidade é vária, com-plexa: múltiplas coisas estão dobradas e
implicadas nelas.
- A simplicidade de Manoel
Sim-plex: “sem dobra”, literalmente. Com-plexo: “com
muitas dobras”. Ex-pli-car: “trazer para fora da dobra, desdobrar”. Em
latim, dobra se diz “pli”. Um ser sem dobra não é exatamente algo reto. O autêntico
simples sempre permanece ligado ao complexo, tal como o fio de Ariadne que ,
desdobrado, permanece unido à complicatio
de seu novelo. E nesse novelo estão implicadas todas as narrativas,
estão implicadas todas as narrativas que salvam, que criam percurso e inauguram
linhas de fuga. A linha reta, ao contrário, não tem novelo: “a expressão
reta não sonha”[7].
Uma linha, dizem, é feita de pontos. Mas o ponto é o falso simples, um simples
meramente matemático. No começo não está o simples: o simples somente
surge como o produto cujo agente o
desdobra de uma complicatio, de algo complexo, como um “afloramento de
falas”[8].
Somente encontramos o simples após uma explicação, e não antes dela. Tampouco
existe o complexo sem o simples, e o simples sem o complexo.
Singularizar é intensificar. Cada um explica o que lhe está implicado
de acordo com a potência que tem. Toda explicação potente é uma forma em
rascunho que explica uma potência que nunca é puramente formal. Uma ideia,
não importa qual, é uma expressão: ela implica algo e dá a possibilidade de ser
explicada por aquele que a vive. E
aquele que a vive também explica a si mesmo naquilo que ele explica e vive.
Os estudiosos da vida nos dizem que aquilo que chamamos de “órgãos”
são, na verdade, dobras. O cérebro, por exemplo, é dobra sobre dobra sobre
dobra...O cérebro é todo dobrado sobre si mesmo. O cérebro é uma complicatio,
porém simples é a ideia que faz pensar e ensina, educa. O pulmão também é uma
dobra: dobra essa feita de dobras. Quando se desdobra fisicamente um pulmão,
ele vira uma superfície do tamanho de uma quadra de tênis. Assim, no
horizonte de uma dobra não está a altura
nem a profundidade, tampouco o ponto; no horizonte de uma dobra está uma
superfície. Não o superficial, mas a superfície. A superfície não é o raso por
oposição ao profundo, ela também não é o baixo em contraste com o alto das
alturas metafísicas. A superfície é a horizontalidade enquanto espaço aberto de
conexões e agenciamentos.
Não raro, há alturas
superficiais, bem como profundidades também superficiais. Na origem da dobra
não está a linha ou o ponto, está a superfície. Em nós, os afetos estão
dobrados; quando os desdobramos, vem expressá-los a superfície do rosto. A onda
do mar, por exemplo, também é uma dobra: se esticarmos uma onda descobrimos que
ela nasce da superfície do mar. Os simples não são profundos, tampouco ascendem
a píncaros. Os simples habitam as superfícies enquanto espaço de travessia e
andarilhagem. Os simples habitam a Terra, eles celestam o chão. Os
simples são andarilhos que “abastecem de pernas as distâncias”[9].
Os poemas de Manoel , seus livros, são dobras. Em cada poema se
encontra a poética inteira, virtualmente dobrada, complicada. Em Manoel não há
linearidade, há um desdobrar da “origem que renova”. A origem é a infância que
se encontra dobrada no poeta, a qual o poeta desdobra na ponta de seu lápis,
bem como no sorriso brincativo sempre a colorir seu rosto idoso.
O poema é uma dobra porque nele
está implicado o que está dobrado junto com tudo. O poema é uma dobra cheia de
dobras. Lê-lo é desdobrá-lo, é explicá-lo. Explicar o complexo é devir
simples. Explicamos um poema de acordo
com a potência que temos. Porém o que está implicado no poema tem sua própria
potência, que pode sempre aumentar a nossa, desde que desejemos devir simples ,
fazendo viver em nós um sentido , uma questão, que nunca se esgota em uma
explicação única, analítica. Ler Manoel é desdobrar o que nele está implicado,
e o que está implicado nele está implicado em nós, pois não se trata de letras,
mas de ideias, de ideias expressivas. Poetas assim têm uma potência de
desdobramento infinita, pois o infinito está implicado nele. E o infinito não
começa e nem termina, o infinito possui apenas meio, como a “estrada que põe
sentido em mim”[10].
Tais poetas não têm exatamente origem, tampouco precisam “do fim para chegar”[11].
Eles têm horizonte: é de um deslimite que eles nasceram, é por isso que
eles nos horizontam.
Os livros de Manoel, sua poesia,
são expressões dessa simplicidade conquistada pelo poeta. Se pudéssemos
desdobrá-los, à maneira como se faz com as dobras de um pulmão, teríamos um
plano do tamanho da terra, enquanto plano de imanência. Não é um tamanho físico
mensurável por réguas, é um tamanho em encantamento, em poder de encantar, o
qual não se pode “passar régua”. Na poética de Manoel está implicada a mesma
potência que se acha implicada em cada coisa que vive. É em nossa alma unida ao
corpo que essa potência se desdobra e se explica, nos explicando, nos
singularizando, empoemando-nos.
- Manoel: pop’filósofo
O
filósofo Gilles Deleuze intitula pop’filosofia
a relação entre o pensar e o sentir, entre a ideia e a sensação, entre o conceito
e a imagem. “Pop” como raiz ou prefixo de popular.
O popular não é o massificado, o popular não é o que custa barato. Ao
contrário, custa muito o popular: custa não em moeda ou capital, mas em
modéstia e gosto. O popular não é o que vende muito: o popular é o que não se
deixa vender, seja pelo mercado seja pela potesta
do Estado. O popular não se opõe ao erudito. O popular não se confunde com
classe ou gênero. O popular não é a classe C, D ou E. O popular é multiplicidade . Povo
ao mesmo tempo nobre e menor, como a
cartola do Angenor, como o sax de Pixinguinha, como o lápis de Manoel. Quem
fala a partir de uma multiplicidade produz um “afloramento de falas”, pois é
aflorando em múltiplas falas que a poética de Manoel se torna um agente
coletivo de enunciação: “escreve-se em função de um povo por vir e que ainda
não tem linguagem”[12].
Na
homenagem pretendida simples, por isso com múltiplas e diferentes vozes, orientou-nos
sobretudo as peraltagens brincativas do
próprio Manoel presentes no poema Retrato
do artista quando coisa: “Esse engenho, pra bem funcionar, havia que estar/
ligado por uma correia aos ventos da manhã./Funcionava ao sabor dos ventos./
Imitava uma instalação./ Mas penso que seja um desobjeto artístico.” Manoel é
um desobjeto acadêmico: não há como
falar dele estando de fora, “sem contágio”; é preciso se instalar nele e deixar
que ele se instale em nós, desabrindo-nos , explicando-nos: “a palavra abriu o
roupão para mim, ela quer que eu a seja”[13], afirma o poeta (já se
instalando naquilo que se instala nele).
[1] Prof. da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro, autor do livro Manoel
de Barros: a poética do deslimite, Rio de Janeiro: 7letras, 2010.
[2] Encontros:
Manoel de Barros (org. Adalberto Müller), Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p.
68.
[3] Entrevista concedida ao jornalista José
Castello e publicada no site Jornal de
Poesia, em 30/05/2005.
[4] Poema “Aprendimentos” , Memórias inventadas – as infâncias de Manoel
de Barros. São Paulo: Editora Planeta, 2010, p. 109.
[5] Encontros:
Manoel de Barros, p. 135.
[6] Manoel
de Barros, Memórias inventadas : as infâncias de Manoel de Barros, p. 113.
[7] “As lições de R.Q.”, Livro sobre nada.
[8] “Retrato quase apagado em que se pode
ver perfeitamente nada”, O guardador de águas, p. 62.
[11] Livro
sobre nada, p. 71.
[12] DELEUZE, G. Conversações, Editora 34, p. 179.
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