segunda-feira, dezembro 12, 2011
Paulo Henriques Britto -Rio de Janeiro
Retirado de Antonio Miranda
Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro, em 1951. Linguista, mestrado em Língua Portuguesa. Professor e tradutor. É uma das expressões poéticas mais expressivas e reconhecidas no início do século 21.
“A necessidade de trabalhar com uma dicção simples e evitar a grandiloqüência “literária” é uma das propostas mais conscientes de meu trabalho”, confessa o poeta em entrevista à revista Azougue (4, abril 1997).
Obra poética: Liturgia da Matéria (1982), Mínima Lírica (1989), Trovar Claro (1997) e Macau (2003).
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTO EN ESPAÑOL
elogio do mal
1
A uma certa distância
todas as formas são boas.
Em cada coisa, um desvão;
em cada desvão não há nada.
À mão direita, a explicação
perfeita das coisas. À esquerda,
a certeza do inútil de tudo.
Ter duas mãos é muito pouco.
Por isso, por isso os nomes,
os nomes que embebem o mundo,
e os verbos se fazem carne,
e os adjetivos bárbaros.
2
O mundo se gasta aos poucos.
A coisa se basta a si mesma,
mas não basta ao que pensa
um mundo atulhado de coisas
que se apagam sem pudor,
que se deixam dissipar
como quem não quer nada.
Existir é muito pouco.
Por isso, por isso os nomes,
os nomes que se engastam nas coisas
e sugam o sangue de tudo
e sobrevivem ao bagaço
e negam a tudo o direito
de só durar o que é duro,
e roubam do mundo a paz
de não querer dizer nada.
3
Bendita a boca,
essa ferida funda e má.
PARA NÃO SER LIDO
Não acredite nas palavras,
nem mesmo nestas,
principalmente nestas.
Não há crime pior
que o prometido
e cometido.
Não há fala
que negue
o que cala.
memento mori
I
Nenhum sinal da solidão se vê
lá onde o amor corrói a carne a fundo.
Dentro da pele, no entanto, você
é só você contra o mundo.
Esta felicidade que abastece
seu organismo, feito um combustível,
é volátil. Tudo que sobe desce.
Tudo que dói é possível.
II
Luz frágil que brota no breu
e num rápido relance dá forma
e cor e corpo às coisas todas,
luz que se apega o pouco que pode
às aparências, acredita piamente
no sonho de substância que secretam,
luta com todas as parcas forças
contra o conforto de apagar-se enfim
por trás de duas implacáveis pálpebras.
Poemas extraídos de AZOUGUE 10 ANOS (Rio de Janeiro: Azougue, 2004), editora liderada pelo poeta Sergio Cohn.
DUAS BAGATELAS
II
Então viver é ísso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vicio,
só isso.
De Liturgia da matéria (1982)
MÍNIMA POÉTICA
1
Poesia como forma de dizer
o que de outras formas é omitido—
não de calar o que se vive e vê
e sente por vergonha do sentido.
Poesia como discurso completo,
ao mesmo tempo trama de fonemas,
artesanato de éter, e projeto
sobre a coisa que transborda o poema
(se bem que dele próprio projetada).
Palavra como lâmina só gume
que pelo que recorta é recortada,
cinzel de mármore, obra e tapume:
a fala —esquiva, oblíqua, angulosa-
do que resiste á retidão da prosa.
De Mínima lírica (1989) [ metapoesia ]
(19 DE JANEIRO)
Até esta chegar às suas mãos
eu já devo ter cruzado a fronteira.
Entregue por favor aos meus irmãos
os livros da segunda prateleira,
e àquela moca —a dos "quatorze dígitos"-
o embrulho que ficou com teu amigo.
Eu lavei com cuidado o disco rígido.
Os disquettes back-up estão comigo.
Até mais. Heroísmo não é a minha.
A barra pesou. Desculpe o mau jeito.
Levei tudo que coube na viatura,
mas deixei um revólver na cozinha,
com urna bala. Destrua este soneto
imediatamente após a leitura.
De Trovar claro (1997)
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