sábado, dezembro 19, 2009

Paulo Neves: "A poesia não se perdeu, o seu lugar social é que ficou difícil de localizar"

Paulo Neves construiu uma admirável carreira como tradutor, sobretudo da língua francesa
Foto:Júlio Cordeiro
by http://bit.ly/5WDI3H ZERO HORA LEIA MAIS Lá
Autor de versos tidos como brilhantes e irretocáveis, discreto e ainda pouco conhecido, o poeta porto-alegrense rompe o silêncio e fala sobre seu processo de criação
Eduardo Veras | eduardo.veras@zerohora.com.br
Paulo Neves é sujeito discreto, sereno, desinteressado das badalações mundanas, avesso ao reconhecimento público. Há três anos, quando lançou o livro Viagem, espera, belo volume de poesia e prosa, ele educadamente se desculpou, mas não quis conceder uma entrevista para Zero Hora. Recusou-se até mesmo a posar para fotografias. Ponderava:

– Não é o melhor momento. Estou lançando um livro. Quem sabe mais tarde.

Em um mundo no qual tanta gente almeja a fama, em que tanta gente faz concessões de qualquer tipo para chamar atenção e ser incensado, Paulo Neves prefere o recato.

Eis que, agora, sem aquilo que no jargão das redações se chama de “gancho jornalístico”, sem o compromisso com a agenda cultural da cidade, o poeta finalmente concorda com a ideia de uma entrevista. O que o seduz é o tema proposto pela reportagem: o processo de criação. Faz apenas uma exigência: que a entrevista seja por escrito, via e-mail. E aceita ser fotografado. É uma entrevista rara, portanto, aquela que se oferece aqui, assim como é rara a figura desse poeta.

Porto-alegrense de 62 anos, Paulo Azevedo Neves da Silva construiu uma admirável carreira como tradutor, sobretudo da língua francesa. É disputado por grandes editoras, como a Companhia das Letras, a Cosac & Naify ou a gaúcha L&PM. É reconhecido pela versão de textos difíceis em áreas como Filosofia, História e Psicanálise. Na sua lista de traduções para o português, constam títulos como Saudades do Brasil, de Claude Lévi-Strauss, ou a biografia de Jacques Lacan por Elisabeth Roudinesco. Também são conhecidas suas versões para clássicos da literatura, como O Vermelho e o Negro, de Stendhal, e A Mulher de Trinta Anos, de Balzac, ou textos mais recentes, como O Convidado Surpresa, de Grégoire Bouillier, e Os Homens que Não Amavam as Mulheres, de Stieg Larsson. É também parceiro de José Miguel Wisnik em canções como Pérolas aos Poucos, Pesar do Mundo e Saudade da Saudade. Em mais de um show em Porto Alegre, o músico paulista saudou publicamente o amigo, que, mesmo nessas horas, se mostrou arredio.

Casado com a professora Miriam, pai de Nicolau, João e Davi, Paulo passou pelos cursos de Filosofia (na USP) e Ciências Biológicas (UFRGS). Chegou a trabalhar como jornalista na São Paulo dos anos 70 e 80. Em 1985, publicou o livro Mixagem, o Ouvido Musical do Brasil, breve ensaio resultante de uma pesquisa feita para a Funarte. Em 2006, lançou Viagem, espera (Companhia das Letras, 128 páginas, R$ 32), reunião de 40 poemas e 32 crônicas curtas. O livro, na época, foi muito bem recebido pela crítica. Em artigo para o Segundo Caderno, o professor Luís Augusto Fischer saudou o poder de sedução de sua linguagem: “controlada, precisa, brilhante, irretocável”.

Na entrevista a seguir, Neves fala sobre o exercício criativo, revê sua formação e discute as tensões e os acasos da invenção poética.

Cultura – Gostaria de focar esta entrevista no seu processo de criação poética. Você poderia começar comentando, de uma forma mais geral, como percebe a poesia, hoje, no Brasil?

Paulo Neves – Vou começar pela segunda parte da pergunta, tentando resumir um tema muito amplo. A poesia sempre gozou de certo prestígio na sociedade, mesmo sendo uma atividade marginal. Essa situação parece ter mudado nas últimas décadas. Editam-se proporcionalmente menos livros de poesia e é raro que se fale dela fora das universidades. Quase não há mais revistas ou suplementos literários. É verdade que na Internet estão surgindo muitos sites de poesia, sei mesmo de poetas que põem esperança nesse novo campo. Mas o que observo (e isso vale para toda a Internet) é que ficou mais difícil de avaliar o que se produz, não só por causa da dispersão, mas porque a nossa época tende a valorizar a expressão em detrimento da invenção e da crítica. E isso é problemático para o fazer poético, ainda mais quando se sabe que este não é uma atividade puramente solitária mas envolve um diálogo com o mundo, diálogo que hoje me parece diminuído em comparação com o passado.

Cultura – Houve uma perda de referências? Não há mais movimentos ou vozes fortes na poesia?

Neves – De fato, e não só na poesia. As grandes referências continuam sendo Bandeira, Drummond, João Cabral, a poesia concreta, que dialogavam mais com seus leitores e também entre si. A poesia não se perdeu, o seu lugar social é que ficou difícil de localizar. Mas é preciso levar em conta um lado positivo nessa pulverização: ela aguça a sensibilidade para coisas miúdas antes não valorizadas, como se pode ver num Manoel de Barros, por exemplo. Sem falar que a poesia continua sendo uma “reserva ecológica” da respiração juvenil da sociedade. O simples fato de alguém querer escrever poesia já é um sinal de saudável inutilidade num mundo cada vez mais utilitarista. Depois de ler Vinícius de Moraes no começo dos anos 60, passei a reconhecer sempre na poesia um componente libertário que independe de época e de estilo e se aplica tanto à linguagem quanto à vida.

Cultura – Queria saber sobre a sua formação como poeta. Quais foram as principais referências?

Neves – Minha formação esteve inicialmente ligada à filosofia, mas não me tornei filósofo nem tenho a consciência muito clara de ser poeta. Sempre gostei de poesia, fui muito influenciado por poetas-pensadores como Drummond, Pessoa, Rilke, mas raramente consigo escrever poemas e nunca muito extensos. É mais por temperamento que por estilo. E é a razão também por que só cheguei a publicar um livro de poesia muito tarde na vida, aliás junto com textos em prosa.

Cultura – Qual seria a diferença entre a sua escrita poética e a sua escrita em prosa? E também com as letras de canções que você faz ocasionalmente?

Neves – Minha poesia, com poucas figuras e metáforas, é quase prosa, e a minha prosa, marcada pelo ritmo e por paralelismos, é quase poesia. Assim a diferença é bastante sutil e por isso fiz questão de pôr as duas juntas no meu livro, mesmo com o risco de não saberem como classificá-lo. Quanto às letras de canções, elas resultaram da minha paixão amadorística pela música, que eu considero, com a pintura, um complemento necessário da percepção poética e sem o qual a própria poesia se empobrece. Acho que todo processo de criação, por mais específico que seja, se beneficia muito do convívio com as outras artes.

Cultura – Esse convívio, em geral, é visto como um convívio sob tensão. A tensão pode ser benéfica à criação?

Neves – A tensão é benéfica, sem dúvida, pois impede que o artista se instale confortavelmente no domínio das suas habilidades. E é sobretudo ao se confrontar com outras artes que ele vê o quanto ainda lhe falta aprender para uma expressão humana mais completa.

Cultura – Como sua atividade de tradutor convive com a escrita mais autoral?

Neves – Eu não me tornei tradutor por livre escolha, fui forçado a buscar esse meio de sobrevivência quando o meu trabalho anterior como jornalista se restringiu (eu não tinha diploma). Mas coincidiu que eu possuía muitas das características psicológicas de um tradutor, que precisa ser metódico, paciente, inventivo quando necessário, o que explica eu estar há mais de 20 anos nesse ofício apesar do seu isolamento e da sua pouca valorização. E a tradução também ajudou a me tornar mais consciente como escritor, é um aprendizado de leitura que requer saber interpretar a fundo o que diz o outro. Observo que muitos jovens têm pressa de publicar o que escrevem, quando fariam melhor se dedicassem algum tempo, mesmo não sendo tradutores profissionais, ao exercício de traduzir um texto em prosa ou em poesia.

Cultura – Na poesia, quais são suas inquietações atuais? Algum projeto em vista?

Neves – Não sou um poeta produtivo. Invejo os que escrevem mais espontaneamente, pois para mim a poesia é rara, ainda que a todo momento eu julgue adivinhá-la próxima, nos interstícios do cotidiano. E sinto a mesma dificuldade na prosa, também condensada, também movida apenas por uma necessidade interior. Quando publiquei o meu livro em 2006, reunindo um material escrito ao longo de vários anos, críticos disseram, embora não fosse um parecer desfavorável, que a minha escrita parecia um recomeço perpétuo e não anunciava um projeto de continuidade. O que posso dizer é que até agora esses críticos têm razão. O que continuo a escrever ainda é uma longa espera de uma nova e incerta viagem. Mas felizmente a criação poética é um processo aberto e conto sempre com o inesperado.

Cultura – Como seria a ocorrência do inesperado na criação poética? É possível esperar o inesperado? Você poderia comentar a partir de um exemplo?

Neves – Darei como exemplo uma canção do Gilberto Gil chamada Se Eu Quiser Falar com Deus (do disco Luar, 1981). A letra descreve como que o momento da negatividade de todo processo de criação e crescimento espiritual. Primeiro ela diz que é preciso ficar a sós, apagar a luz, aceitar a dor etc.; depois, na última estrofe, que é preciso se aventurar, caminhar pela estrada “que ao findar vai dar em nada”, e então Gil repetirá 12 vezes a palavra “nada...” para no final concluir: “...do que eu pensava encontrar”. O maravilhoso aqui é que o próprio nada se frustra e acaba adquirindo outro sentido, inesperado, graças a uma virada poética. Evidentemente não se pode esperar o inesperado, mas pode-se aceitá-lo.

Cultura – Noto nas suas respostas (e já havia notado na sua poesia) uma exigência severa consigo mesmo. O rigor é essencial à criação?

Neves – Acho essencial a qualquer criação, pelo menos interiormente. Mas há artistas que se manifestam de maneira mais solta, sem preocupação de coerência, e esse é o caso de muitos gênios que, segundo Hannah Arendt, vivem em concordância natural com o mundo mesmo quando o desafiam. Não é o caso da maioria dos artistas, que possuem dons mais limitados e cuja busca é mais tortuosa. Mas o rigor é sobretudo a marca de poetas que perseguem com afinco uma precisão da linguagem no limite do indizível, e o modelo supremo é o haicai japonês, do qual eu tento, muito de longe, me aproximar.

Cultura – E como é a questão do fracasso na criação? O fracasso tem a ver com o inesperado, mas é diferente dele. Como aceitar o fracasso?

Neves – Há o fracasso que resulta da concepção errada de uma obra, da escolha de meios errados, e é um fracasso corrigível quando se trata de um verdadeiro artista, que percebe o que faz. Mas há um fracasso mais profundo relacionado a uma incapacidade de expressão ou a um sentimento de impotência da própria arte no mundo, e esse é muito mais difícil de aceitar. Um texto em prosa do meu livro (que a editora pôs na contracapa) fala justamente da consciência de uma distância entre ambição e recursos que somente a poesia não buscada, aquela que vem por uma espécie de graça, consegue anular e transpor. E eu digo ali que poesia não é mais que provisão do provisório, como o alimento. Ou seja, é uma pequena vitória sobre o fracasso, jamais garantida, simplesmente porque somos filhos do Tempo.

Inéditos de Paulo Neves

A concha vazia

Refugo do mar jogado na areia.
Vento em rodopio nas suas volutas.
Refúgio do mar, canto de sereia
que o tempo esculpiu. A forma da escuta.

O coração quando jovem

Não há como resgatar
sua pureza perversa,
seus amores patéticos,
seu desejo agonístico
de poesia e revolução.
O que foi belo e se abriu
confusamente ao mundo
não se vive duas vezes,
mas também não se esquece.

Contradição

Eu esquiava sobre montanhas de dor.
O coração abismado na terra estranha
não compreendia o que era inverno e verão.
A neve ardia em duro combate com a luz.
Nas pernas vibrava uma voz que me dizia:
Segue, não te detenhas na contradição.

Das possibilidades

Das possibilidades que nos sonhamos
resta-nos afinal somente uma,
a que somos e no início rejeitamos.
A menos que, milagrosamente,
uma outra não sonhada se apresente
e realize todas – sendo ela nula.

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